A criação do Tribunal Penal Internacional, por meio do Estatuto de Roma de 1998, representou um grande impulso à teoria da responsabilidade internacional dos indivíduos, na medida em que o Estatuto prevê punição individual àqueles praticantes dos ilícitos nele previstos.
Há muito já se falava na necessidade da criação de um tribunal internacional permanente com competência para julgar aqueles que perpetrassem crimes contra o Direito Internacional Público. Anteriormente já se havia criado tribunais para o julgamento de tais crimes, como o Tribunal de Nuremberg, o Tribunal de Tóquio e os Tribunais ad hoc criados para julgar os crimes cometidos na ex-Iugoslávia e em Ruanda. Entretanto, todos estes tribunais eram tribunais ad hoc, ou seja, tribunais provisórios criados especialmente para o julgamento de determinados atos. Verdadeiros tribunais de exceção. Por isso, muitas críticas se faziam a tais tribunais, por terem sido ele estabelecidos após a ocorrência dos fatos tidos como criminosos (violação ao princípio do juiz natural), especialmente para julgar tais fatos (violação da vedação aos tribunais de exceção) e tipificando os crimes após a sua ocorrência (violação ao princípio da reserva legal). Ainda assim, muitos defendem que a instituição destes tribunais foi necessária para evitar a impunidade de pessoas responsáveis por atos hediondos.
Para evitar que outros tribunais com as mesmas falhas sejam instituídos novamente é que se criou o TPI como órgão permanente.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi aprovado em julho de 1998, tendo entrado em vigor internacional em 1.º de julho de 2002. O TPI tem competência para processar e julgar indivíduos acusados de cometer os crimes de maior gravidade que afetam a sociedade internacional como um todo. O Brasil depositou sua carta de ratificação ao Tratado em 20 de junho de 2002, data em que passou a fazer parte do tratado.
O TPI é uma pessoa de Direito Internacional Público e será inicialmente composto por dezoito juízes, eleitos para um mandato de nove anos, vedada a reeleição, dentre pessoas de elevada idoneidade moral, imparcialidade e integridade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus respectivos países. Sua competência é regida pelo princípio da complementaridade, ou seja, os Estados continuam tendo a responsabilidade primária de investigar e processar os crimes cometidos pelos seus nacionais, sendo da competência do TPI os casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir seus criminosos.
A jurisdição do Tribunal não é estrangeira, mas internacional.
O Estatuto do TPI não pode ser ratificado ou aderido com reservas.
Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou prosseguir os seus termos por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições.
O Tribunal decidirá sobre a não admissibilidade de um caso se:
a) O caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou não tenha capacidade para o fazer;
b) O caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer;
c) A pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3° do artigo 20 (bis in idem);
d) O caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal.
A fim de determinar se há ou não vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias:
a) O processo ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 5°;
b) Ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça;
c) O processo não ter sido ou não estar sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoa em causa perante a justiça;
A fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessários ou não estará, por outros motivos, em condições de concluir o processo.
O Tribunal será composto pelos seguintes órgãos:
a) A Presidência;
b) Uma Seção de Recursos, uma Seção de Julgamento em Primeira Instância e uma Seção de Instrução;
c) O Gabinete do Procurador;
d) A Secretaria.
O Gabinete do Procurador atuará de forma independente, enquanto órgão autônomo do Tribunal. Competir-lhe-á recolher comunicações e qualquer outro tipo de informação, devidamente fundamentada, sobre crimes da competência do Tribunal, a fim de os examinar e investigar e de exercer a ação penal junto ao Tribunal. O Procurador será eleito por escrutínio secreto e por maioria absoluta de votos dos membros da Assembléia dos Estados Partes para um mandato de nove anos, vedada a reeleição.
Os Estados Partes deverão cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste.
O Tribunal está habilitado a dirigir pedidos de cooperação aos Estados Partes. Os Estados Partes deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas no Estatuto.
O TPI é competente para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão, todos eles imprescritíveis. Entretanto, o TPI só tem competência em relação àquelas violações praticadas depois da entrada em vigor do Estatuto no Estado de nacionalidade do infrator ou em cujo território foi praticada a violação.
Para os efeitos do Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
Para os efeitos do Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido aqui ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes. O Estatuto inovou ao incluir entre os “crimes de guerra” aqueles praticados em conflitos armados não-internacionais.
Nas negociações do Estatuto de Roma, não se chegou a um consenso sobre o conceito de “crime de agressão”. Por isso, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.
O Tribunal será competente para julgar pessoas físicas. Quem cometer um crime da competência do Tribunal será considerado individualmente responsável e poderá ser punido de acordo com o Estatuto. Nos termos do Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem:
a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável;
b) Ordenar, solicitar ou instigar à prática desse crime, sob forma consumada ou sob a forma de tentativa;
c) Com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática;
d) Contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum. Esta contribuição deverá ser intencional e ocorrer, conforme o caso:
i) Com o propósito de levar a cabo a atividade ou o objetivo criminal do grupo, quando um ou outro impliquem a prática de um crime da competência do Tribunal; ou
ii) Com o conhecimento da intenção do grupo de cometer o crime;
e) No caso de crime de genocídio, incitar, direta e publicamente, à sua prática;
f) Tentar cometer o crime mediante atos que contribuam substancialmente para a sua execução, ainda que não se venha a consumar devido a circunstâncias alheias à sua vontade. Porém, quem desistir da prática do crime, ou impedir de outra forma que este se consuma, não poderá ser punido em conformidade com o Estatuto pela tentativa, se renunciar total e voluntariamente ao propósito delituoso.
O disposto no Estatuto sobre a responsabilidade criminal das pessoas físicas em nada afetará a responsabilidade do Estado, de acordo com o direito internacional.
O Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. As imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.
A todo o momento após a abertura do inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do Procurador, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras informações submetidas pelo Procurador, considerar que:
a) Existem motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal; e
b) A detenção dessa pessoa se mostrar necessária para:
i) Garantir o seu comparecimento em tribunal;
ii) Garantir que não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a ação do Tribunal; ou
iii) Se for o caso, impedir que a pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo que seja da competência do Tribunal e tenha a sua origem nas mesmas circunstâncias.
A responsabilidade penal do indivíduo responsável em nada exclui a responsabilidade internacional do Estado pelos mesmos atos.
O Estatuto de Roma parece contrariar a Constituição Federal em alguns pontos. Vejamos cada um deles.
O TPI pode solicitar ao Brasil a entrega de qualquer pessoa para julgamento. Caso esta pessoa seja brasileira, tal procedimento parece violar a vedação constitucional à extradição de nacionais. Entretanto, tal entendimento é equivocado, uma vez que entrega não se confunde com extradição. Enquanto esta ocorre entre dois Estados soberanos, aquela ocorre entre um Estado soberano e o TPI. A vedação constitucional à extradição de nacionais encontra fundamento no fundado receio de que o nacional não seja devidamente julgado por tribunal estrangeiro afeito à soberania de outro Estado, tribunal este do qual o Brasil não tem o menor controle. Logo, tal vedação não tem razão de ser em relação à entrega, pois o TPI não está afeito à soberania de nenhum outro Estado, mas é fundado em parcelas de soberania que vários Estados voluntariamente cederam em seu favor, inclusive o Brasil.
O Estatuto do TPI prevê a possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua, pena esta vedada pela Constituição Federal. Parte da doutrina entende que a vedação constitucional em nada conflita com o texto do Estatuto, pois a Constituição proibiu apenas o legislador brasileiro de cominar tal pena aos crimes regidos pela legislação penal interna, não atingindo o legislador estrangeiro ou internacional. Tal entendimento era adotado pelo STF inclusive quanto às extradições passivas executórias que julgava em que o extraditando tivera sido condenado à pena de prisão perpétua por tribunal estrangeiro, não exigindo o STF qualquer comutação da pena. Logo, não haveria inconstitucionalidade na ratificação do Estatuto pelo Brasil.
Entretanto, em 2004 o STF mudou seu entendimento ao julgar a Extradição n.º 855, impondo como condição para a extradição passiva executória de extraditando condenado no exterior à pena de prisão perpétua a comutação da pena em penas de, no máximo, 30 anos de reclusão para cada crime, nos termos de nossa legislação penal interna.
Quanto às regras brasileiras relativas às imunidades em geral e às prerrogativas de foro por exercício de função, não são elas impeditivas do julgamento de pessoa titular de tais imunidades ou prerrogativas pelo TPI, pois o próprio Estatuto estabelece que tais imunidades ou prerrogativas não lhe são oponíveis. Aqui a questão é resolvida pelo critério da especialidade: as imunidades e prerrogativas são regras gerais excepcionadas por uma regra mais específica, que diz que elas não se aplicam no âmbito do TPI.
O Estatuto previu expressamente o respeito aos princípios da reserva legal e da anterioridade da norma penal, pelo que não há antinomia entre a Constituição Federal e o Estatuto nesta matéria.
Outra questão de aparente conflito entre a Constituição Federal e o Estatuto é a possibilidade da TPI julgar pessoas que já tenham sido absolvidas pelo Judiciário brasileiro, com trânsito em julgado, quando entender que o processo criminal que redundou na absolvição tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal ou não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. Neste caso, haveria violação da proteção à coisa julgada material, garantia constitucional. Para parte da doutrina, o princípio da complementaridade resolve a questão.
Da mesma forma, a possibilidade do Tribunal reexaminar questões já examinadas em última instância pelo Judiciário brasileiro, tal qual previsto no artigo 17 do Estatuto, parece violar a mesma garantia da proteção à coisa julgada material. Para parte da doutrina, vale aqui o mesmo raciocínio feito quando da apreciação do problema da pena de prisão perpétua: a vedação constitucional vale apenas para o legislador interno brasileiro, não podendo vincular o legislador internacional.
Roteiro baseado em sua maior parte em MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 545 - 573.
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4 comentários:
Melhor professor do mundo!!! Amo!!
Sou aluna do curso de Direito - Uni CEUB de Brasília/DF. ADOREI os roteiros de aula do mestre. muito úteis. EXCELENTE!!! Além de ser um GATO tb! Valeu!! Obrigada Tiago e boa sorte na carreira... Fernanda Stuart.
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